
Por: Patricia Vianna Getlinger
Será que é possível minimizar ou eliminar a angústia e o
sofrimento nas relações amorosas? Será que os casais contemporâneos que decidem
abolir contratos preestabelecidos sofrem menos? Ou os acordos feitos “sob
medida” por cada casal resultam em maior liberdade e felicidade?
Por outro lado, o que pensar quando os “novos” acertos entre
o casal falham? Quando mesmo tentando criar modelos mais livres para os
relacionamentos, alguém se sente “de fora” e se incomoda em não ser o único nem
o preferido? Afinal, o ciúme é uma emoção legítima, ou é vergonhoso ser
ciumento? E indo além, é errado pretender um amor exclusivo?
Temos visto surgir um número crescente de relacionamentos “abertos”,
em que os parceiros (seja nas relações hétero, seja nas homoeróticas) buscam
rever e redefinir conceitos como fidelidade e exclusividade sexual, abrindo a
relação para a entrada de terceiros. Isso também ocorre nos casos de poliamor,
que quando pretendem ser relações amorosas estáveis, pressupõem de forma mais
evidente ainda a reconsideração da monogamia. Uma das observações mais
interessantes quanto à dinâmica das relações abertas, é que elas costumam ter
parâmetros particulares, criados pela dupla ou pelo grupo, que regulam e
relativizam a “liberdade total”. Por que isso costuma acontecer?
O que se observa é que em cada caso, embora geralmente se
parta da intenção de não ter regras, acaba surgindo a necessidade de se
estabelecer um acordo específico. Alguns preceitos organizadores de um
relacionamento aberto, por exemplo, podem determinar que ter relações sexuais
com outras pessoas não será considerado traição desde que todos estejam
presentes na cena; ou que a intenção seja comunicada antes ao parceiro ou
parceira; ou que tudo seja relatado depois; ou ainda, que não se chegue ao
orgasmo com terceiros. Esses são alguns padrões cerceadores, mas o que nos
interessa discutir, é: por que esses parâmetros se tornam necessários? Ou seja,
por que, mesmo quando se tenta evitar certas convenções, elas são reinseridas
pelos mesmos sujeitos que as tinham abolido?
O que se verifica em qualquer relação amorosa, especialmente
as não monogâmicas, é que prever ou controlar sentimentos como ciúme não é
possível. Como saber se o “terceiro incluído” no casal não vai despertar uma
paixão no meu companheiro ou companheira? E se eu flagrar um olhar mais intenso
do que eu gostaria entre eles? No fim, sempre corremos o risco de que alguém se
sinta menos importante, menos amado ou mesmo excluído. Mas, afinal, por que é
tão desconfortável ficar de fora?
Desde a situação infantil de exclusão do casal parental,
presente no modelo freudiano do filho fora do quarto dos pais, temos que lidar
com esse desconforto e com a angústia que ele causa. A resolução do complexo de
Édipo passa por adiar a fantasia infantil de parear com um dos pais e de deixar
o outro de fora. Suportar a condição da própria exclusão exige da criança (e
continua exigindo do adulto) que todos lidemos com o desejo onipotente de ser o
mais especial e o centro das atenções. Requer que aceitemos a incompletude ou,
em outras palavras, que elaboremos a castração simbólica.
Mas o processo de luto dessa posição onipotente é sempre
inconcluso. E isso mantém a posição infantil sempre “à espreita”, buscando uma
possível satisfação, que quando ocorre é muito prazerosa e de certo modo faz
parte do equilíbrio psíquico. Assim, todos guardamos resquícios desse momento
inicial de vida, que são reativados ao longo da infância e em muitas
experiências ulteriores: querer ser o preferido dos pais com relação aos
irmãos, tornar-se o queridinho da professora, atrair a admiração do chefe, ou
mesmo chamar a atenção pelo aspecto inverso: ser o que dá mais trabalho, o que
sempre perturba e recebe críticas etc. Em um caso e no outro, o que é
satisfeito é o desejo infantil de sentir-se único, ser o eleito ou manter-se em
evidência.
Com o fim da infância, fazemos o luto (incompleto) dessa
posição onipotente e mesmo percebendo, com maior ou menor dor, que os pais têm
um ao outro, que os irmãos também são amados, que há outros alunos que cativam
a professora e que não somos o eleito pelo chefe, continuamos precisando de
reasseguramentos narcísicos desse tipo. E qual é a experiência posterior com maior
potencial de restaurar os sentimentos de estar incluído e de ser sui generis
para alguém?
O apaixonamento. Esse estado recupera a sensação prazerosa
de ser o escolhido e de ser mais encantador do que todas as outras
pessoas. Ou seja, a paixão e o amar e ser amado restituem parte da ferida
narcísica operada pela castração. Até aí, isso nos ajuda a compreender porque é
tão bom se apaixonar. Mas, de onde vêm a angústia e o sofrimento nas relações
amorosas, sejam elas “abertas” ou “fechadas”?
Da ameaça de que esse estado idílico seja ameaçado e
perdido. A alegria de reviver a ilusão de completude narcísica promovida pela
paixão pode ser simultânea ao temor de sua perda. De fato, esse efeito
paradoxal decorre dos indícios de que a sensação tão maravilhosa de reviver a
onipotência infantil pode acabar, comprometida pela entrada de um terceiro que
roube o nosso lugar e corte essa utopia, transformando-a num engodo.
Talvez os novos relacionamentos abertos sejam uma tentativa
interessante de tentar diminuir os efeitos nocivos da exclusão, definindo que
ela não deve incomodar. O equilíbrio, entretanto, mostra-se instável, como
demonstram o surgimento (e muitas vezes o aumento crescente) dos acordos
particulares que dão contorno à liberdade total. Esses limites restabelecem o
que fica “de dentro” e o que fica “de fora”, reeditando as fronteiras
simbólicas do triângulo edípico e evidenciando seja a dificuldade de se
relacionar com absoluta soltura, seja certo conforto diante de fronteiras
claras. Negar a dependência afetiva e o prazer da exclusividade, buscando ser
“evoluído” e não sentir ciúme, pode funcionar por um tempo. Mas não garante
menos sofrimento nas relações amorosas. E, afinal, se podemos restaurar a
experiência de ser único, mesmo sabendo que é ilusória, por que recusá-la?
*Patricia Vianna Getlinger é membro associado da SBPSP-SP
e membro do Departamento de psicanálise do instituto Sedes Sapientiae