terça-feira, 12 de setembro de 2017

A moça tecelã


Até que ponto, séculos de uma cultura que sempre relegou à mulher a segundo plano, ignorando-a como um ser dotado de potencialidades e desejos que não só os de "cuidar e atender às necessidades do outro", não estariam internalizados em mim mesma e em todas as mulheres que compartilham comigo os desafios de conviver a um só tempo, com paradigmas tão dissonantes quanto os que se impõem para as mulheres nos dias de hoje?

Paradigmas esses, que ainda estão por serem quebrados à medida que procuramos por respostas à perguntas que antes nos pareciam já respondidas.


Existem ainda  muitos desafios a serem superados , e muitos outros papéis a serem assumidos e vividos de forma mais plena, e sem culpas.

Mas pelo menos, já tecemos algum caminho...

As mulheres que vierem depois de nós, certamente, já terão um esboço a seguir.

Esperamos que elas sejam ainda mais livres que nós

que possam amar muito mais,

e ser muito mais felizes.


Entretanto, se perceberem que o "bordado" não ficou como esperavam, que elas possam simplesmente desmanchá-lo, tal qual a "Moça Tecelã" fez,

que possam tecer outra história para si mesmas.





A Moça Tecelã

Por Marina Colasanti

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.


quarta-feira, 6 de setembro de 2017

O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA


Tenho um livro sobre águas e meninos.

Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento

e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água

O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.

Falava que os vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito

porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo

que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu que era capaz de ser

noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.

Até fez uma pedra dar flor!

A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.

Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios com as suas peraltagens

e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos

– Manoel de Barros –


sexta-feira, 21 de julho de 2017

Amor depois de amor




AMOR DEPOIS DE AMOR


Vai vir o tempo

em que você, orgulhoso,
vai saudar a si mesmo chegando
à sua própria porta, em seu próprio espelho,
e vão trocar sorrisos de boas-vindas,

você vai dizer, sente-se. Coma.
Vai amar o estranho que um dia você foi.
Dê vinho. Dê pão. Devolva seu coração
pra ele mesmo, o estranho que o amou

por toda a sua vida, e a quem você ignorou
por outro alguém, que o conhece de cor.
Pegue da estante as cartas de amor,

as fotografias, as anotações desesperadas,
descasque seu reflexo do espelho.
Sente-se. Sirva-se da vida.

Derek Walcott






segunda-feira, 19 de junho de 2017

Desistir para insistir ...Em ser feliz

Sobre algumas desistências: não fracassamos… Nós nos resgatamos


Por: Ivonete Rosa em 11 de maio de 2017.



Neste texto, optei por não fazer introdução, quero começar parabenizando a você, leitor(a), pela sua capacidade de ter desistido daquilo que tanto te incomodava. Isso mesmo, parabéns por ter se posicionado  e pensado em você. Você foi muito guerreiro(a) por ter chutado o balde e saído daquele emprego no qual você sentia-se profundamente desvalorizado e infeliz, e hoje está vivendo a satisfação indescritível de fazer o que realmente gosta.
Não foi fácil, talvez tenha sido muito criticado e julgado como inconsequente por seus amigos e familiares, mas deu a volta por cima e as coisas estão fluindo bem.

Você não fracassou ao desistir daquele emprego, você, na realidade, resgatou a sua dignidade.

Parabenizo a você que ficou tantos anos vivendo uma relação afetiva infeliz, aliás, acho que algumas relações nem deveriam ser denominadas como “afetivas”, visto que são  a própria tradução do tormento.
Certamente foi muito difícil para você conseguir romper, não é mesmo? E isso é muito compreensível, pois as rupturas nessa área são sempre carregadas de dores e angústias, por mais infeliz que a pessoa esteja. São muitas questões para se levar em consideração, sabe?
E acontece de muitas pessoas optarem por uma vida infeliz  e amargurada por receio de serem julgadas como  egoístas ou inconsequentes. Então, você foi forte o suficiente para dar um basta e recomeçar a sua vida.
Não importa se um novo amor vai chegar em breve ou se continuará sozinho(a) por um longo tempo, importa é que teve capacidade de  lutar por você e hoje olha para trás e respira aliviado.
Talvez você já tenha ouvido a expressão “fulano fracassou no casamento”, bem, acho melhor um casamento fracassado do que viver infeliz pelo resto da vida. É preciso muito cuidado para não permitirmos que esses dedos que a sociedade nos aponta ditem a forma como devemos viver. Sem falar que, muitos que criticam alguém que teve coragem de sair de uma relação infeliz, sentem inveja dessa pessoa por ter feito algo que elas gostariam, mas não têm coragem.
Parabéns…há sim, vida após a separação. Deixando claro que não estou fazendo apologia ao divórcio, apenas não concordo que alguém tenha que viver como um morto-vivo dentro de uma relação falida, onde não há sequer respeito, imagina amor.

Palmas para você que desistiu de continuar com uma “amizade” ao se dar conta de que o(a) amigo(a)  era só você, o  outro apenas tirava proveito.

Não sinta remorso por isso, você merece um prêmio por ter dito “chega” a esse(a) sanguessuga. Uma coisa é fato: quando optamos por nos tratar com respeito e zelo, tudo muda ao nosso redor. Inclusive, pode acontecer de experimentarmos  a sensação de solidão por algum tempo, isso porque as pessoas com as quais nos relacionamos nos mais variados contextos ( amizade, namoro, trabalho, família etc.) vão percebendo que não somos mais os mesmos.
Elas se depararão com outra pessoa e isso gera um desconforto muito grande nelas. Então, ao perceberem que, com essa nova criatura elas não terão  como ser abusivas, desrespeitosas ou folgadas, só restará a elas a opção de  saírem de cena. Mas não devemos nos preocupar com essa aparente solidão, trata-se apenas de um breve período de reconstrução das nossas  relações.
Outras pessoas chegarão em nossas vidas, trazendo-nos o que elas têm de melhor e receberão, também, o nosso sagrado.
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Texto extraído do site "O Segredo" em 19/06/2017.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Não há relação sexual

O que Lacan quis dizer quando afirmou que "não existe relação sexual"?


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Os Amantes' (1928) - René Magritte






O real do sexo é da ordem do impossível, uma conta inexata em que a soma quase nunca obedece a lógica tal como a conhecemos.
Sendo o corpo marcado pelos significantes, este é também submetido a lógica do inconsciente. Lógica esta em que um mais um, quase nunca soma dois.
Quando nos relacionamos sexualmente, entram em cena o simbólico e imaginário de cada um dos parceiros, sendo impossível portanto que se atinja a completude, a perfeita junção dos corpos, ou almas.
Sempre haverá uma sobra, um resto de amor que nos mantém em permanente insatisfação. Insatisfação esta que tenta se presentificar por exemplo, através de todas as formas de arte para dar conta deste vazio que se forma a cada novo encontro. Esta sobra, resto ou vazio, é o que nos faz querer mais, e mais e ainda mais. Sempre buscando uma nova forma de encontrar o nirvana, o paraíso perdido que na verdade nunca existiu, a não ser no nosso imaginário.

segunda-feira, 5 de junho de 2017




Se eu pudesse dar um conselho a você, pequena menina confusa, perdida, do olhar cheio de resquícios daquilo que ela cuidadosamente chamaria de solidão, seria: respire.
 O mundo de fato não espera por você, mas você, sim, deve esperar pelo mundo. 
As coisas chegam prontas no momento exato em que são precisas, e não exatamente quando você quer. Nem toda dor é a maior do mundo e fatalmente tudo passa, mesmo quando o coração parece querer sair pela boca e retumbar por si só o tamanho daquela saudade. 
Não sofra antecipadamente. As pessoas, as situações, os sentimentos, nunca estão terminados. Dê espaço para algumas reticências, vírgulas e saiba entender um ponto final de coração tranquilo. 
Respire.
 Se quiser ir, vá. Nada no mundo é pior do que perder uma oportunidade que poderia mudar o rumo de tudo. O sentimento ainda estará lá quando você acordar, mas esfriar a cabeça antes de bater o pé impulsivamente aumenta em 90% as chances de uma escolha acertada ou, pelo menos, de um erro fundamentalmente coerente. Sim, errar conscientemente faz parte do processo, afinal de contas, foi graças a tantos tombos afobados e tropeços que mais pareciam quedas de abismos que hoje você é a mulher que se orgulha de ser. 
De nada adianta essa ansiedade e essa sede incontrolável de prever o amanhã, o depois, os próximos minutos. 
Tudo pode mudar no infinito de um segundo. O que me leva a outra questão: responda a mensagem, atenda ao telefone, chame pra sair, diga que gosta, que odeia, que sente, que precisa, diga qualquer coisa, para depois não se arrepender do seu silêncio. 
Respire. 
Comemore as vitórias, mesmo que sejam pequenas e delicadas.
E, acredite, as pessoas que se importam permanecem, apesar de. Simples assim.

(Danielle Daian)